Recentemente o site Memorial de Brumadinho publicou um vídeo produzido pela Prefeitura de Brumadinho no início da década de 1990 durante a gestão do prefeito Cândido Amabis Neto, o Gibiu falando sobre o desenvolvimento e as riquezas do município.
O vídeo foi dividido em quatro partes e foi intitulado “A ferro e fogo”.
Nele o município de Brumadinho é cantado em prosa e verso prenunciando a sua transformação em um grande abrigo industrial para empresas explorando, naquele momento, a possibilidade aventada pelas autoridades federais e estaduais de mudar o atual traçado da BR-381 passando por Itaguara, Igarapé, Contagem e Betim, como indiquei em meu livro “Mídias locais, história e desenvolvimento de Brumadinho – 1910 – 2013”, para o seu traçado original que antigamente passava por Brumadinho.
Diante dessa possibilidade, que não foi para a frente, este vídeo institucional prenunciava uma era gloriosa para Brumadinho.
Analisando hoje este vídeo, considero que a visão sobre o desenvolvimento de Brumadinho era bastante idílica e um produto típico dessa época em que ainda se considerava desenvolvimento muito mais como crescimento econômico do que com a implantação do bem-estar social, de justiça social e de equilíbrio ambiental, variáveis que, infelizmente, ainda estão muito longe de nossas pautas desenvolvimentista.
Mas foi com o impacto causado pelo rompimento da barragem de rejeitos de minério de ferro da Vale no Córrego do Feijão, a B-6, que ocorreu no dia 25/1/2019, às 12h38, matando 272 pessoas deixando três desaparecidas e provocando imensuráveis prejuízos econômicos e ambientais com profundos reflexos negativos na saúde das pessoas é que descobrimos que o desenvolvimento sugerido no título do vídeo produzido pela prefeitura na década de 1990: “A ferro e fogo” teve um sentido quase que literal.
Hoje eu acrescentaria ao título do vídeo acima relembrado duas palavras com a finalidade de indicar no que resultou o nosso desenvolvimento de lá para cá ficando assim: “Desenvolvimento de Brumadinho a ferro, fogo e lama tóxica” que, menos que um desenvolvimento equilibrado, nos trouxe destruição, desalento, degradação da nossa fauna e da nossa flora e muita dor, saudades, melancolia e revolta, principalmente com o rompimento da barragem de rejeitos da Vale no Córrego do Feijão.
E mais revoltados ficamos ao descobrirmos que a Vale tinha um Plano de Emergência prevendo o possível rompimento dessa barragem e que, infelizmente, foi tão pouco divulgado no município que deu a impressão que ele existia apenas para cumprir uma formalidade legal para nunca ser utilizado.
Através deste Plano também ficamos tardiamente sabendo que caso a barragem de rejeitos, a B-6, se rompesse, como de fato aconteceu, os milhões de metros cúbicos de água, lama tóxica e de rejeitos nela depositados desde a década de 1970 pela antiga Ferteco, empresa de capital alemão comprada pela Vale trinta anos depois, escoariam em poucos minutos atingindo rapidamente as instalações administrativas e o restaurante da empresa que ficavam abaixo dela, assim como parte da Comunidade do Córrego do Feijão até chegar ao Rio Paraopeba provocando incalculáveis prejuízos a nossa fauna e flora, a nossa economia e a vida humana da região.
Caso isso acontecesse, a lama tóxica dali escoada diminuiria radicalmente as chances das pessoas presentes em seu caminho de escaparem com vida, como de fato aconteceu no dia 25 de janeiro de 2019, um dia de triste lembrança.
E, ironicamente, neste dia as sirenas de alarme, que faziam parte deste Plano, apesar de serem cantadas em prosa e verso nos boletins informativos da Vale, não tocaram, porque foram engolidas pela lama, informou laconicamente o presidente da Vale.
Mas mesmo se tocassem teriam sido inúteis por causa do curto espaço de tempo entre o alerta por elas emitidos e a necessária evacuação que deveria acontecer das centenas de pessoas que naquele momento estavam nestes locais, principalmente aqueles funcionários que estavam indo almoçar ou estavam almoçando justamente neste horário no restaurante instalado abaixo da barragem.
E, infelizmente, neste momento e ao lado de dezenas de outras pessoas, lá estavam também meus dois sobrinhos, o Sandro e Marlon, assim como a Eva, filha do Marico que ali trabalhava como cozinheira, e o Bill, (Duane Moreira de Souza), manobrista da MRS e meu ex-companheiro de truco, filho da Rosângela Matos, meus conterrâneos da antiga comunidade do Inhotim, entre outras pessoas conhecidas e também vítimas dessa tragédia.
Como vivemos em Brumadinho, uma pequena cidade ainda com hábitos interioranos, a nossa dor se mostrou exponencialmente aumentada, pois aqui somos todos amigos, compadres ou companheiros solidários uns dos outros seja na alegria, na dor ou na tristeza.
Tragédia anunciada
Inspirando-me no escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, Prêmio Nobel de Literatura, através do título de seu clássico livro “Crônicas de uma morte anunciada”, perguntei-me na época se esta tragédia que ceifou a vida de 272 pessoas e deixou até hoje três desaparecidos, arrasou com nossa economia e com nosso meio ambiente, poderia ter sido evitada ou se simplesmente foi um azar do destino que não poderia ser evitada pela Vale?
Isto me fez refletir e levar em conta que desde o momento em que esta e outras empresas de mineração passaram a revolver e a escarafunchar freneticamente “a ferro e fogo” as nossas montanhas em busca do precioso minério de ferro desde o início do século passado com a finalidade de exportá-lo para aqui e acolá afim de grandes e crescentes lucros esta tragédia já estava anunciada.
Afinal, estas empresas estão mais de olho nos altos índices apresentados pelas bolsas de valores mundo afora, como Nova York, Londres ou São Paulo, do que com segurança de suas instalações.
Incrementadas pelo ritmo frenético da busca do lucro elas enchem diariamente as centenas de vagões das composições ferroviárias com o minério de ferro extraído das nossas montanhas que, cadenciadamente e diariamente, atravessam o centro de Brumadinho rumo aos portos do litoral onde é embarcado em gigantescos navios rumo a China, a Europa e outros destinos que mal podemos imaginar quais.
Em troca trazem dólares para o país para saciar a insaciável sede das bolsas de valores de aqui e acolá e distribuir polpudos e generosos dividendos para os seus acionistas.
Nesse ritmo frenético trazem milhões de dólares em divisas para o país.
De vez em quando, alguns dos funcionários dessas empresas também recebem generosas gratificações cujos valores variam de acordo com a hierarquia dos cargos ocupados e os índices de produtividade da empresa.
Assim estimuladas, estas mineradoras vão escarafunchando cada vez mais nossas montanhas.
Em resposta elas exibem grandes e crescentes feridas vermelhas formadas pela supressão da vegetação em sua volta, situação que pode ser vista de Brumadinho quando, por exemplo, dirigimos nosso olhar para os arredores do Tejuco.
Um pouco mais à direita dessa localidade, vislumbramos o Pico dos Três Irmãos que, mudo, também observa este escarafunchar frenético das nossas montanhas.
E lá ele permanece talvez por um milagre ou por força da legislação enquanto em sua volta ele vai testemunhando o revólver das entranhas do nosso solo e jogando no ar uma poeira densa e incômoda que solenemente ignora o trabalho incessante de caminhões-pipa.
Enquanto a poeira vermelha vai subindo para os céus, abaixo os nossos lençóis freáticos vão aos poucos manifestando profundo desconforto frente as atividades das dezenas de mineradoras instaladas pelas quebradas de Brumadinho.
E, nesse ritmo incessante, a água que abastecia o Tejuco, e que um dia abasteceu a cidade de Brumadinho, vai aos poucos desaparecendo e deixando os moradores indecisos sem saberem se clamam por Deus, pela polícia ou pela Copasa.
Ou seja, o “a ferro e fogo” agora conta também com muita lama tóxica e pouca água potável!!!!
A mineração e o poeta
Estas situações nos fazem relembrar do pensamento poético de Carlos Drummond quando tentava explicar a dor que sentia ao olhar para as montanhas de Itabira e para o Pico do Cauê sendo esquartejados e destruídos pelas atividades de mineração da Vale afetando dolorosamente as suas memórias de infância.
Em um arroubo compensatório, a empresa chegou até mesmo a transportar a fazenda em que o poeta morou replantando-a quase que artesanalmente no alto de um morro tendo à frente, ironicamente, uma paisagem desoladora composta de profundas feridas provocadas pela busca desenfreada do minério de ferro.
E, sem trocadilhos, esta emenda da Vale ficou pior que os sonetos da infância de Carlos Drummond ou, quem sabe, quase que como um insulto contra a sua permanente revolta contra a Vale em Itabira!
Isto me fez lembrar que a Vale anteriormente se chamava Vale do Rio Doce, mas que depois que foi privatizada em 1997, tirou o rio do seu nome e, em 2015, com a tragédia de Mariana, matou este rio mesmo asfixiando-o com seus braços de ferro e que agora faz o mesmo com o nosso Paraopeba e com a população que vive no seu entorno.
No Paraopeba não mais corre suas milenares águas amarelas e barrentas e sim o sangue que continua a se esvair do ferimento mortal provocada pela ganância que esta e outras empresas de mineração vem impondo aos moradores de Brumadinho e que agora seguem silenciosamente rumo ao mar levando consigo os sonhos de centenas de trabalhadores e de seus familiares empurrados pela lama toxica que nele foi despejada com o rompimento da barragem no Córrego do Feijão no dia 25 de janeiro, de 2019, data que nunca esqueceremos e que marcará para sempre o nosso caminhar rumo ao futuro.
A luta continua
Em resposta aos quadros desoladores anteriormente descritos à população de Brumadinho, aos movimentos de defesa da sociedade às suas organizações públicas e privadas se vêm instadas a juntarem forças para evitar que a mesma comédia embromatória que a Vale encenou e vem encenando desde 2015 em Mariana não se repita também por aqui, não obstante o formidável elenco de caríssimas bancas de advogados por ela contratadas para fazer a sua defesa.
E não custa dizer que a resposta a estas questões dependerá também muito da ação individual e das ações coletivas organizadas de muitos parentes das vítimas, seja através, da Avabrum, do Ministério Público, das mídias locais, nacional e internacional, das entidades de direitos sociais e dos políticos que se solidarizam com a dor de nossa população para que, mais uma vez, tanto a Vale quanto a todos aqueles que concorreram para que esta tragédia-crime acontecesse não fiquem impunes e que os familiares das vítimas e o município recebam as devidas e justas compensações a que tem direito, embora saibamos que nada disso trará de volta os nossos entes queridos que nela perdemos.
Valdir de Castro Oliveira*