/A música, o disco e a cultura do obsoleto

A música, o disco e a cultura do obsoleto

Valdir de Castro Oliveira

Aos poucos e com uma velocidade cada vez maior, a cada dia e a cada ano, muito dos produtos da nossa indústria cultural vão ficando rapidamente obsoletos enquanto a nossa memória afetiva, na falta de opções, se volta para determinadas cronologias do passado lembrando e relembrando fatos, história e produtos relacionados a esse campo.

No caso da música e do cinema é incrível a rapidez de como alguns dos suportes midiáticos desses campos foram evoluindo desde o final do século XIX até os dias atuais.

As pessoas mais velhas são testemunhas dessas mudanças. Entretanto, os mais jovens não têm muita ideia de quão a rápida foi essa evolução. Neste quesito o jornalista e escritor Ruy Castro, em artigo escrito no jornal Folha de S. Paulo (10/07/2023), nos fala de como no caso da música os seus suportes foram transformados e abandonados depois de tantos serviços amorosamente prestados ao púbico como foi o disco, embora ele ainda esteja fortemente impregnado às nossas memórias afetivas.

O gramofone – Os primeiros toca-discos do início do século XX

Desolado, ele constata que a tendência atual é a de comprarmos músicas solos numa mídia invisível e incorpórea chamada streaming deixando para trás a era das grandes coleções de discos que traziam tanto gravações musicais quanto outros assuntos (por exemplo, a bíblia, os discursos de Getúlio Vargas, ou as primeiras peças da propaganda brasileira, entre outros assuntos.

Este era o tempo dos discos singles configurados pelos discos de 78 rotações (rotações por minuto) lançados em 1902 nos quais se gravava apenas uma música. Entretanto, rapidamente os seus produtores descobriram que podiam neles gravar músicas dos dois lados. Estes “bolachões” eram tocados primeiramente em fonógrafos e depois em vitrolas. Mas em 1948 os produtores da indústria musical descobriram o disco de vinil, os chamados LPs (long play) contendo seis músicas de cada lado.

Disco de 78 rotações “Poema do Adeus”, cantado por Miltinho na década de 1950 a 1960.

Na década de 1960 estes discos eram tocados nas chamadas vitrolas em que os jovens da época se divertiam promovendo vários tipos de eventos, como as chamadas “horas dançantes” nas tardes de sábado ou domingo. Mas também eles se tornaram parte indissociável do rádio no plano dos programas de auditório mantido por várias emissoras, como foi o caso da Rádio Inconfidência que funcionava na Feira de Amostras ao lado da rodoviária em Belo Horizonte.

O sonho de todo pretendente a cantor era se apresentar ali.

A vitrola das décadas de 60 e 70 que conjugava toca-discos com rádio

Mas depois as gravadoras descobriram o filão dos LPs duplos com 24 músicas que traziam grandes coleções musicais. E, ao lado deles, surgiram também os discos solos com uma música de cada lado que se assemelhavam aos antigos bolachões de cera de 1902. Estes pequenos discos de 33 r.p.m eram tocados exaustivamente nas emissoras de rádio que assim antecediam o sucesso e o lançamento de algum LP com doze músicas ou das coleções de mais de um disco com temáticas musicais.

Disco 33 rotações com a clássica música de Geraldo Vandré “Prá não dizer que não falei das flores”, sucesso de venda e de reprodução nas emissoras radiofônicas no final da década de 1960 e início da de 70. 

O rádio era fundamental para garantir o sucesso desses empreendimentos musicais e, nesse contexto, lembramo-nos da chamada música caipira cujo sucesso nacional foi construído através do tripé composto pelo rádio, o disco e o circo, como fizeram exaustivamente Tonico e Tinoco, Jararaca e Ratinho ou Cascatinha e Inhana, entre outras duplas, que cantavam simultaneamente nos circos e nas emissoras de rádio garantindo a elas sucesso de vendas dos seus discos em todo o território nacional.

Assim também se deu com muitas expressões da música popular brasileira.

Entretanto, em 1984 surgiu o CD que comportava muito mais músicas que os discos de vinil que, diante disso, tomaram o caminho do museu, embora hoje ele esteja sendo ressuscitado diante de um mercado composto, principalmente, pela saudade, como nos lembrou Ruy Castro diante do surgimento de CDs duplos, triplos ou quádruplos.

Mas, curiosamente, o CD rapidamente tomou também o caminho da obsolescência, embora continuem ainda sendo vendidos até hoje. Ele cedeu lugar para o mercado hoje completamente dominado pelo streaming em que as pessoas compram apenas as músicas que quiser, fazendo com que deixem para trás o manuseio dos discos de vinil ou  dos CDs como faziam as gerações anteriores.

O mesmo acontecerá no cinema.

Dos filmes mudos em preto e branco (como a famosa dupla do Gordo e o Magro ou os filmes de Carlitos) passamos as grandes produções coloridas cujas referências principais são “E o Tempo Levou” e depois a super-produção “Os Dez Mandamentos que provocavam longas filas de espectadores para assisti-los. Este foi um tempo profícuo que levou a formação de milhares de clubes de espectadores que se reuniam para debater as produções cinematográficas dessa época.

Mas tal como aconteceu com o campo musical, aos poucos os filmes saíram das salas de cinema e migraram para os lares graças a ascensão do vídeo cassete. Com isso a maioria das casas de cinema foram aos poucos sendo fechadas sendo a maioria transformada em templos religiosos de confissão evangélica.

Em contrapartida surgiram Brasil afora milhares de locadoras inaugurando o cinema caseiro.

Em Brumadinho chegamos a ter umas seis ou sete locadoras.

Mas com as mudanças das salas de cinema tradicional, muitas salas de cinema foram fechadas. Aqui em Brumadinho assistimos, pesarosos, o fechamento do Cine São Tarcizo (com z, como faz questão de frisar Nery Braga) que funcionou perto da ponte do Rio Paraopeba onde, no início da noite e antes da sessão do cinema, acontecia o tradicional footing da cidade e que antes feito nas imediações da estação da EFCB.

Mas seguindo a tendência tecnológica de que tudo o que é sólido no sistema capitalista se desmancha no ar, rapidamente as locadoras que aqui existiram também fecharam diante da ascensão do sistema de streaming que tomou conta do mercado cinematográfico, tal como já havia acontecido com o campo musical.

Hoje ficamos desnorteados e sem saber que filmes escolher para assistir diante da gigantesca oferta de filmes que este sistema nos oferece.

Diante de tantas mudanças e de criação de tantas obsolescências programadas no campo da indústria cultural, esperamos que nós humanos não nos tornemos também peças descartáveis deste vasto mundo que se transforma rapidamente.