Para escrever este artigo peguei carona no filme “O Curioso Caso de Benjamin Button” cujo protagonista principal são as diferentes fases da vida pela qual passamos. Se estamos acostumados a relatar a vida da infância para a velhice, neste filme o relato inverte estas fases da vida como se ela iniciasse na velhice e caminhasse para a meia-idade, a mocidade, a infância e, finalmente a morte a qual independe destes roteiros.
Benjamin Button (Brad Pitt) já nasce velho e, embora bebê, nasceu de forma incomum, com a aparência e doenças de uma pessoa em torno dos oitenta anos, com cataratas nos olhos, dor nas colunas, juntas, travadas e tudo aquilo que atinge a todos na velhice. Esta situação nos permite, de forma comovente, a entender a vida por outros olhos, principalmente a partir do momento em que Button, ao invés de envelhecer, vai cando cada vez mais jovem.
No filme somos colocados diante do emocionante conto do relojoeiro que, após perder o filho na guerra, resolve construir um relógio que marque o tempo em sentido contrário para desvelar o sentido inverso da echa do tempo. Esta inversão quebra a expectativa comum que temos sobre a ordem do tempo permitindo-nos re etir sobre a paixão, a dor, a felicidade, as descobertas e a sabedoria que acompanham as fases das nossas vidas.
Se nas sociedades tradicionais estas fases da vida eram o que conformavam os nossos destinos, na sociedade capitalista contemporânea criou-se o mito do eterno retorno a um estado juvenil em que a juventude tornou-se um bem tão valorizado e o adiamento do envelhecimento um lema cada vez mais presente nos discursos públicos e na mídia recorrentemente ancorada na indústria do rejuvenescimento corporal e nos pretensos milagres produzidos por produtos cosméticos ou pelas intervenções estéticas de maior ou menor extensão revelando inconformidade com o declínio do corpo e a tentativa de parecer novo, mesmo quando os anos avançam no percurso de vida.
Embora se possa extrair muitos exemplos da história de Benjamin Button, fixei-me muito nos recados que ele nos inspira quando refletimos sobre os destinos da velhice na sociedade contemporânea. E, nesta direção, busquei reforço no livro de Eclea Bosi “Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos” (Companhia das letras, 1994).
Segundo ela, nas sociedades tradicionais a função social do velho era a de aconselhar, unir o começo ao fim, ligando o que foi e o porvir e o seu destino estava ligado à práxis coletiva, como a vizinhança (versus a mobilidade), a família larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a certos objetos biográficos (versus objetos de consumo) se constituíam nos arrimos em que a memória se apoiava. Em sociedades mais estáveis um octogenário podia começar a construção de uma casa, a plantação de uma horta, preparar os canteiros e semear um jardim sendo certo que seus filhos darão continuidade a estas obras.
Com o aceleramento da história e dos costumes, a tradição, a ideia de continuidade e de repetição perdem espaço criando uma série de rupturas nas relações entre os homens e destes com a natureza e todo sentimento de continuidade da vida perde o sentido ou simplesmente perde valor.
A sociedade contemporânea rejeita o velho e não oferece a ele muitas expectativas de sobrevivência de sua obra. Perdendo a sua força de trabalho, ele deixa de ser produtor e reprodutor. E, por não participar da produção, não faz nada devendo ser tutelado pelos outros ou pelo Estado. Embora a moral o cial pregue o respeito ao velho, ela age com duplicidade e má-fé contra ele convencendo-o a ceder lugar aos jovens, afastando-os dos postos de decisão, não ouve seus conselhos devendo se resignar a um papel passivo. Em muitos casos tolhem-lhe a liberdade de decidir e terceiros ou parentes próprios decidem em seu nome para o “seu próprio bem”.
Aos poucos vão se tornando dependentes de uns e outros e, em muitos casos, internados, quando não “depositados” em asilos ou em “casas de saúde”. Se houve um tempo em que o artesão acumulava experiência tornando-se, com sua obra, um mestre de ofício, hoje, o trabalho deixou de ser uma fonte de sabedoria tornando o sinônimo de repetição maquinal de gestos que não permitem o aperfeiçoamento, a não ser na rapidez, como os telefonistas contemporâneos com seus repetitivos gerúndios. E, em época de desemprego, os velhos são especialmente discriminados e obrigados a rebaixar suas exigências de salários e de status. Além disso enfrentam cada vez mais crescentes coe cientes de adversidade impostos pela vida moderna: as escadas ficam mais duras de subir, as distâncias mais longas a percorrer, as ruas mais perigosas de atravessar ou, como zeram as autoridades de trânsito de Belo Horizonte ao decidirem diminuir o espaço de tempo entre o fechamento e o abrir dos sinais de passagens de pedes- tres nas principais artérias da cidade.
O resultado não podia ser outro: velhos sendo agrados pelo fechamento do sinal no momento que ainda estão atravessando a rua!
A única coisa que vai bem, não para eles, mas para o mercado de consumo, é a indústria de artefatos para idosos, como próteses, lentes, aparelhos auditivos, cânulas.
Mas, ai daqueles que não tem dinheiro ou uma boa aposentadoria!
En m, a transmissão da experiência perdeu valor em nossa sociedade substituída, por um lado, pela tecnologia e por uma ideologia que valoriza apenas jovens saudáveis como consumidores e como mão de-obra-barata, intelectual ou manual, cujos padrões de repetição de tarefas estão codificados em sistemas e memórias cibernéticos dispensando a experiência acumulada, pois assim como a sabedoria, o conhecimento hoje prescinde dos anos de vida.
O velho já não tem nenhuma serventia para ensinar tudo o que sabe e que custou toda uma vida para aprender.
Remando contra este tipo de desprezo societário, alguns exemplos de vida em Brumadinho codificados em formato de livro deixam-nos com alguns alentos mas que, por falta de espaço vou apenas citá-los prometendo, na próxima edição do jornal, comentá-los.
No próximo número comentarei de muitas lembranças de “velhos” foram positivamente acionadas em Brumadinho remando contra as situações anteriormente descritas.
