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Com quantas poeiras se faz uma Bruma Pequena?

Armindo Teodósio

Brumadinho da minha infância, e nisso lá se vão mais de 40 anos, pois farei 53 anos em 2022, deixou uma marca indelével no meu jeito de ser e existir. Nas minhas memórias, a subida da antiga Rua Grafito em direção à Rua Presidente Kennedy, para depois chegar à Escola Padre Machado, ao Grupo Padre Machado, como dizíamos na época, era marcada, nos dias de inverno, por uma espessa bruma, que penetrava as blusas de tricô que usava. Era uma bruma e um frio cortantes, mas que me reforçavam o sentido de ser de Brumadinho.

Mas, Brumadinho nunca foi apenas Brumas, também foi e é a terra vermelha e a poeira da mineração chegando em todos os cantos e lugares. É a cidade do trabalho duro, das mãos calejadas em diferentes partes de nosso município, ganhando o pão com o trabalho na mineração e também fora dela. É a cidade do Museu Inhotim e também de uma entrada repleta de poeira da mineração. Esse pó pode muitas vezes encobrir as belezas de nosso vasto e diverso território. Mas, ainda assim, formas de viver, existir e resistir em Brumadinho, inclusive fora da economia da mineração, sempre existiram e continuarão a existir.

Desde o crime da Vale em 2019, Brumadinho se tornou ainda mais diversa. Cresceu em população e viu aumentar o número de pessoas, grupos, consultorias, organizações, movimentos, universidades, empresas e órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário, que passaram a estar presentes no cotidiano da cidade. Muitos se ressentem desses “estrangeiros” nas terras das Brumas Pequenas. E se ressentem com razão, não apenas com uma resistência que existe em diferentes lugares do mundo quando um território passa a ser frequentado por quem antes não se detinha ali.

Digo isso, digo que há uma razão por detrás dessas críticas e ressentimentos com os “estrangeiros”, porque para alguns de fora é muito fácil encontrar uma resposta imediata para a resistência que encontram. Vários rapidamente rotulam algumas pessoas e comunidades de Brumadinho como retrógradas, conservadas, tradicionalistas, etc., etc., ou seja, com uma série de adjetivos pejorativos. Rotulam alguns dessa forma, mas encontram outros mais abertos a eles e colaborativos, que também rotulam como modernos, progressistas, evoluídos, etc. E, com isso, estabelece-se assim dentro da cidade uma divisão, uma cizânia que só contribui para a impunidade gritante que ainda vemos diante do crime ocorrido em 2019.

Quando analisamos de perto e de forma mais complexa e crítica essa realidade, descobrimos bons projetos, bons profissionais e pessoas vindas de fora e aportando em Brumadinho com propostas interessantes. Portanto, a resistência a tudo e todos, como li recentemente em um grupo de WhatsApp, acusando algum de não ser de Brumadinho e induzindo o “estrangeiro” a um cala boca, é um grave erro que muitos de nossa cidade estão incorrendo.

Mas, dentre todo esse universo de pessoas e organizações “estrangeiras” que em Brumadinho aportaram, há também comportamentos questionáveis e práticas duvidosas. Esses comportamentos minam as possibilidades daqueles que fazem trabalhos corretos, qualificados e bem intencionados de alcançarem seus resultados em Brumadinho.

Recentemente, através das pesquisas e atividades de extensão universitária que desenvolvo eu com meus colegas de grupo de pesquisa NUPEGS, descobrimos posturas de consultorias contratadas pela Vale e de um importante centro de pesquisa científica em saúde pública no Brasil muito questionáveis. Ambos tomaram tempo, pararam as vidas das pessoas para responder questionários e dar entrevistas, seduziram alguns membros de comunidades com empregos temporários para coletar dados e, depois de suas pesquisas feitas, simplesmente mandaram via correios e transportadoras relatórios técnicos que nem profissionais de saúde conseguem ler e discutir, ou então enviaram livros, muito bem encadernados e de publicação dispendiosa, cheios de diagnósticos e dados técnicos que também não foram explicados para toda a comunidade de forma ampla, transparente, irrestrita e democrática. Isso é péssima pesquisa científica, postura técnica que em nada contribui para o empoderamento das pessoas e comunidades de Brumadinho em sua luta por justiça, reparação e construção de novos rumos, do futuro de nosso município.

Não se engane, querida leitora, querido leitor, Brumadinho é algo escondido entre as brumas de nosso bioma e clima e a poeira das mineradoras. Brumadinho ainda está por ser descoberta. Muitos que aqui aportaram depois de 2019 ainda não compreenderam Brumadinho. Cabe às pessoas de nossa terra que tem boas intenções, tenacidade, luta e compromisso com a justiça e a efetiva regeneração de nosso município assumir seu lugar de protagonismo, centralidade e autonomia, convivendo sem preconceitos com os de fora, mas também sem se submeteram aqueles que aqui aportaram para reproduzir posturas antiéticas e autoritárias de consultoria, mobilização social e ambiental e pesquisa e extensão universitárias.