/AMOR DOÍDO VELADO

AMOR DOÍDO VELADO

Ele partiu faz algum tempo. Saudades ficaram e hoje percebo que a sua ausência diante do cenário atual tão nosso,  lhe fora providencial. Brumadinense como poucos,  ribeirinho como tantos,  venerava o rio Paraopeba. Nascido e criado às margens do rio vivia desafiando suas cheias, dentro ou fora do  leito,  com a competência que Deus lhe confiava. Duelos de gigantes destemidos e determinados eram rotineiramente vivenciados e tive o privilégio e participar como coadjuvante de muitos desses. Os protagonistas exauridos após duelarem-se, seguiam em frente com a revigorada determinação de tão pouca gente. Talvez se aqui estivesse não o veríamos cheio de risos de dentro pra fora, sua permanente característica. Não se conformaria se ele soubesse que no pé da serra onde ela matava porcos do mato, uma represa em forma de armadilha matou tanta gente sem chances de defesa. Certamente com seus filhos choraria. Como estaria ele  vendo a mata fechada, marcada por suas trilhas, substituída por um vale de lama pedrificada e perguntar “por quê?” e ser soterrado pela indigesta resposta: acidente. Sofreria, sofri, sofreremos. Uma terra vermelha num caminho tortuoso  com cruzes  virtuais de um cemitério imortal em nossas memórias.  Com veria um punhado de cachorros procurando corpos e não pacas nas tocas às margens dos ribeirões de águas cristalinas que não existem mais? Como se sentiria escolhendo uma vara de bambu de aproximadamente de cinco metros para passar o bote de um lado para outro do rio Paraopeba se hoje basta uma de um metro e meio?  Como trocaria o acordar de pássaros cantando por carretas desenfreadas e barulhentas a metros de sua casa, colocando em riscos seus familiares e animais domésticos? Ele não viu seu querido filho caçula partir e os  “Osvaldos”  não mais estão  na família. Perdemos mais do que um nome. Não existe mais a referência de um pai de família ou até mesmo a família que ele criou. Reconheço que o privilégio dele de partir mais cedo lhe poupou sofrimentos com os quais convivemos hoje.    Um anzol de espera na data de seu aniversário por várias datas eu me fiz como se ele fosse, e repeti seus ensinamentos. “Depois da correnteza um remanso onde o peixe descansa, é ali a toca dos peixes grandes”. Algumas vezes sim, outras não. Alguns dos graúdos  morderam a isca viva da experiência saudosa. Nessas vezes comemorei com orgulho enaltecendo-o “em memória”.  Se aqui estivesse, armaria mais anzóis em outros pontos esperas nos dias seguintes.  Convidaria para subir o rio pescando, faria um “covo”, tentaria pegar todos os peixes possíveis. Isso hoje também não adiantaria porque os  peixes também foram embora. Mas creio que ainda levantaria às 9h para tirar o leite, faria um queijo para comer com melado e roubaria linguiça defumada nas madrugadas. Reuniria os filhos, podarias as arestas e arranjaria motivos para fazer uma festa. Reclamaria que a cidade de Brumadinho estaria barulhenta, suja, empoeirada e que ele não conhecia mais ninguém. Voltaria para casa triste e só voltaria ser ele mesmo, sentado no rabo do fogão a lenha, contando casos e comendo às escondidas, suas comidas impróprias para a noite; leite com farinha, angu com açúcar e manteiga derretida ou o ovo cozido escondido na água do feijão. A casa era lar com ele, sem ele, aparências é o volátil  alicerce. Como tantos brumadinenses no dia 02/11/2019, dia de finados, teremos nos cemitérios da cidade muitos encontros marcados. Amor vivido, doído, sob lama e terra, velado.