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Memórias e bons envelhecimentos

Escrevi na edição passada do Circuito Notícias de que nas sociedades tradicionais a função social do velho era a de aconselhar, unir o começo ao fim, ligando o que foi e o porvir e o seu destino estava ligado à práxis coletiva, como a vizinhança (versus a mobilidade), a família larga, extensa (versus ilhamento da família restrita), apego a certas coisas, a certos objetos biográficos (versus objetos de consumo) se constituíam nos arrimos em que a memória se apoiava. Em sociedades mais estáveis um octogenário podia começar a construção de uma casa, a plantação de uma horta, preparar os canteiros e semear um jardim sendo certo que seus filhos dariam continuidade a estas obras.

Com o aceleramento da história e dos costumes, a tradição, a ideia de continuidade e de repetição perdem espaço criando uma série de rupturas nas relações entre os homens e destes com a natureza e todo sentimento de continuidade da vida perde o sentido ou simplesmente perde valor.

A sociedade contemporânea rejeita o velho e não oferece a ele muitas expectativas de sobrevivência de sua obra. Perdendo a sua força de trabalho, ele deixa de ser  produtor e reprodutor.

Não obstante este cenário negativo em relação a velhice na sociedade contemporânea, algumas pessoas conseguem não apenas superar este quadro quanto nele exemplarmente inscreve suas digitais para os outros como tem acontecido em alguns casos em Brumadinho.

Seriam muitos os exemplos a serem aqui evocados, mas que por falta de espaço neste momento irei me ater apenas a alguns casos que recentemente ganharam o espaço público em formato de livro através dos quais as pessoas neles retratadas disponibilizaram publicamente a dimensão sensível de suas memórias e a maneira peculiar com que atravessaram o tempo histórico tornando estas informações acessíveis não apenas para os seus familiares mais próximos, mas também para a coletividade na qual vivem ou viveram.

Neste mister destaco aqui o livro “O poema mostra o sentido da história” publicado este ano por D. Zilda Andrade, emérita professora de Brumadinho, cujo prefácio coube a um dos seus filhos coruja, o Luciano Andrade.

O livro nos encanta já a partir da capa magnifica e delicadamente ilustrada por uma bela imagem composta por um tecido de crochê, algo bem familiar e conhecido ao nosso interior mineiro, feito em 1962 pelas mãos da D. Olívia, mãe da D. Zilda.  Já o restante do livro nos brinda liricamente com fotos, belos poemas, fotos, hinos e delicadas reminiscências que desvelam parte da história de Brumadinho e de que maneira a autora nela esteve envolvida como mãe, esposa, avó e, principalmente como educadora.

É uma obra comovente e refinada, fruto de quem viu e ainda vê a vida exemplarmente passar nela inscrevendo suas marcas. A poesia que nos apresenta, além de nos transmitir um testemunho singular sobre a história de Brumadinho é também uma mensagem de esperança e de sabedoria cumprindo exemplarmente a mais bela lição sobre o papel dos velhos nos grupos sociais ou sociedades, que é o de unir pela fala ou exemplo de vida o passado com o presente e indicar os caminhos do futuro, papel este em declínio na sociedade globalizada em que a memória coletiva se desloca cada vez mais para os algoritmos das redes computadorizadas.

Sua leitura nos faz acreditar que a felicidade existe e está ao nosso alcance.

E lendo este livro, fiquei emocionado com os singelos versos que dedicou a minha querida Escola Municipal Santinha Maciel que existiu no Inhotim cujas origens remontam aos inícios dos anos de 1950, onde minhas filhas e vários outros parentes ou vizinhos nela estudaram até ser desativada em 2011 depois do desaparecimento físico da comunidade do Inhotim para ceder espaço à expansão do Inhotim Museu de Arte Contemporânea no mesmo território.

Igualmente, me emocionei também com a facilidade de como ela se locomovia (e ainda se locomove) do seu espaço individual subjetivo e sensível para o espaço público, o que nos é revelado pelas leituras dos hinos que compôs sobre Brumadinho e os cargos que exemplarmente ocupou no sistema educacional do município de onde granjeou uma verdadeira legião de admiradores, entre eles muitos ex-alunos hoje homens e mulheres bem formados que dela sempre se lembram exemplarmente.

Neste mesmo diapasão não posso deixar de me referir aqui a outro livro recém-publicado sobre a memória dos nossos “velhos” explicitando publicamente a passagem de uma das mais emblemática personagem política de Brumadinho que foi Abelardo Duarte Passos (1916 + 2002) como nos revela o livro publicado neste ano intitulado “Uma vida na História: com a palavra Abelardo Duarte Passos” (Editora Código Plus, 2019, 186 páginas), com edição de Flávio Friche. Este livro foi publicado em capa dura, ricamente editado e fotograficamente muito bem ilustrado mostra-nos de que maneira a sua história (e estórias) se confundiu com a história do próprio município através dos vários papeis que representou e dos momentos que viveu como pai, marido, farmacêutico e, principalmente, como político.

Por falta de espaço nesta edição, no próximo número falaremos mais deste livro.

Aguardem.